quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Não é uma consulta qualquer

Entrou na sala do médico tão de mansinho que parecia quase voar.  Sua respiração era lenta, quase mórbida. Os olhos caídos e inchados.
Sentou lentamente na cadeira, esperou que o médico lhe perguntasse algo, não queria ser a primeira a pronunciar qualquer palavra. Não queria falar. Por ela ficaria calada para sempre, ou melhor, por que todos não se calavam para sempre?

O médico esperou que ela dissesse pelo menos seu nome, em vão.
- Então... Qual é o seu problema? – Pergunta óbvia que ele fazia para todos os pacientes soou tão entediante, quanto a cara da moça que estava a sua frente.
- Dói aqui. E aqui. – Apontou para o coração e para a cabeça.
- E quando isso começou? – Fingia anotar qualquer coisa, no final ia receitar um analgésico mesmo.
- Foi depois de uma viagem que eu fiz. – O liquido que lavava seus olhos há alguns dias estava voltando ao seu trajeto, a começar por aquele nó que ele dá na garganta antes de escorrer pelos olhos.
O médico pareceu se interessar um pouco pelo caso.
- Interessante. Para onde foi essa viagem? – Pela primeira vez olhava realmente para a moça.
- Não sei qual é o nome. Me levaram. Parecia interessante, percebi que era perigoso... Nem cheguei a ficar muito tempo, mas lembro muito bem de quando eu resolvi sair de lá. – Um olhar distante, como se estivesse fora do corpo estava estampado no rosto dela.
Ele estava começando a achar que teria que levá-la para a ala psiquiátrica.  
- E como era esse lugar? Por que você resolveu sair de lá? – Largou a caneta e sentou-se próximo a moça, extremamente interessado.
- Não, não. Dói. Não quero lembrar! – Apoiou sua cabeça entre as pernas.
- Ok, fique calma. Mas pelo menos me diga o motivo que a fez abandonar esse lugar. – Segurou a mão dela.
Afastou suas mãos da dele. Colocou um dos fios que caiam, atrás da orelha. Colocou suas pernas em cima da cadeira junto ao seu corpo, fechou os olhos e continuou.
- Era uma desordem, tudo muito confuso. Sabe aquela bagunça que fica após uma festa, com os pratos sujos, as bexigas murchas pelo chão, tudo fora do lugar que até parece que nunca mais voltará a ser organizado como antes? Aí você fica nervoso com tudo aquilo, a agonia de não dar conta te consome. Até que você percebe que precisa criar coragem e dar um jeito em tudo aquilo, antes que toda aquela desordem se agrave mais. Foi esse o motivo por eu abandoná-lo.

O liquido que havia estacionado em sua garganta, agora invadiu os olhos da moça pra virar uma fonte de coisas sujas a escorrer por entre seus olhos.
- Mas você não organizou, você abandonou. – Ele parecia perceber algo mais profundo vindo de toda aquela história.
- Não! Sair de lá foi uma forma de organizar. Sem mim ali, talvez, a pessoa que cuidasse do lugar conseguisse coordenar toda aquela bagunça, minha parte foi feita durante os dias que passei por lá. – Olhava horrorizada para o médico que parecia ter lhe ofendido com aquela afirmação, sair de lá tinha sido sua atitude mais corajosa.
- E por que você não reclamou disso com o prefeito ou pra pessoa que comandava o lugar?
- Não é simples? É como quando você vê um amigo participar de um jogo, você olha e parece fácil. Até ri dele por ele não conseguir passar de fase. Como uma coisa tão simples ele consegue dificultar tanto com movimentos tão complexos?
Mas no momento que ele te desafia a jogar, você percebe que não é fácil. Exige algo que você não sabe definir o que é, luta pra passar de fase e nada... Era exigir demais que eu conseguisse chegar até o prefeito, passar de fase seria um mártir. Preferi continuar, apenas, a observar o jogo.
- Entendo. Acho que nesse jogo que você se encontra eu não tenho remédio pra lhe dar. – Observou o médico, entendendo o que realmente se passava.
- E o que eu faço com isso e isso? – Apontou novamente para o coração e a cabeça, só que com um toque de raiva.
- Quando dói? – Voltou para sua caneta e sua falsa anotação.
- Quando eu lembro a cabeça grita. Quando a cabeça grita o coração dói. Todo o tempo, constantemente. E não saí daqui, nem daqui. – Apontou novamente para o mesmo lugar, só que já sem forças a moça.
- Toma aqui um Lisador.

3 comentários:

  1. Quando se conhece o autor (no caso, autora), a leitura do texto fica comprometida, porque eu a faço tentando achar a situação nos próprios "faniquitos" de quem escreveu, e não tentando encontrar o sentido que realmente faria para mim.
    Anyway, parabéns pelo texto, exemplos ilustrados e o final simples e muito bom.

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  2. "Não! Sair de lá foi uma forma de organizar. Sem mim ali talvez a pessoa que cuidasse do lugar conseguisse coordenar toda aquela bagunça(...)"

    Essa parte diz tudo!

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